Queridíssima avó.
Há dois anos que moro no Brasil. O país que você sempre quis conhecer. Não lembro direitinho da estória. Acho que foi por um casal brasileiro, que você e o avô conheceram em um cruzeiro no mediterrâneo, não foi? Fizeram uma amizade linda. Lembro de um cartão postal, que chegou em casa com a imagem do Pão de Açúcar. Agora, eu estou aqui, no Rio de Janeiro.
Nos últimos meses, tive vários problemas de saúde. Os diferentes médicos de medicinas alternativas (sei que você tinha muita fé neste tipo de práticas) diziam a mesma coisa: “você está sem chão” – “você está desconectada da terra” – “você não está pisando o chão, está no ar”. Fiquei muito constrangida e desconcertada. O que queria dizer estar sem chão? Parei para respirar, escutar o meu corpo e tratar de entender a forma de me conectar com a terra.
Passei muitas horas trabalhando na frente do computador, em casa. Sem tempo para fazer mais nada. Cozinhando rapidinho para comer, ainda mais rápido, e continuar trabalhando. Sem tempo para mim. O meu corpo reclamava e eu não estava querendo escutar, por causa do tempo. Não ter tempo. Sem tempo. O tempo. Não chegar a tempo. Achava que cozinhar era restar o tempo de leitura e das minhas escritas da universidade.
Aliás, um dia descobri os textos de Glória Anzaldúa. Foi você que enviou? As mulheres não precisamos de um quarto próprio para escrever. Não precisamos de uma biblioteca incrível, para aguardar a chegada da inspiração e trabalhar nossas escritas. Ela falou assim para gente:
“Olvídate del “cuarto propio” – escribe en la cocina, enciérrate en el baño. Escribe en el autobús o mientras haces filas en el departamento de Beneficio Social, o en el trabajo durante la comida, entre dormir y estar despierta. Yo escribo hasta sentada en el excusado. No hay tiempos extendidos con la máquina de escribir a menos de que seas rica, o que tengas un patrocinador (puede ser que ni tengas una máquina de escribir). Mientras lavas los pisos o la ropa, escucha las palabras cantando en tu cuerpo. Cuando estés deprimida, enojada, herida, cuando la compasión y el amor te posea. Cuando no puedas nada más que escribir”.
Acho que agora entendi a importância do trabalho manual, para a construção do meu chão. Minha escrita continua na cozinha. Perto de você. Cozinhar é escrever a nossa história. Uma história, que não começa na cozinha daquela loja em que passei minha infância com você, mas em Albal, sua vila natal, com a avó Amparo, em uma casa que eu nunca conheci. Uma história, por outro lado, sem embalagens, plásticos impossíveis, chefs chiques e transgênicos. A nossa história vem de outra episteme, daquela que compreende os ciclos da natureza, em que cada estação tem os seus alimentos próprios.
Essa sabedoria está se perdendo, avó, ou já foi? Já era, como dizem aqui. Aurora Levins Morales, no texto a “Intelectual orgânica certificada” diz:
“Se nos ha entrenado a conciencia para ser consumidoras de brillantes envases, bolsas precintadas, botellas a prueba de niños y cantidades copiosas de envoltorio plástico y celofán. Se nos enseña a desconfiar de los alimentos a granel y a depender del reconocimiento de la marca. A los estudiantes con los que trabajo se les ha enseñado a dar a los libros más autoridad de la que dan a sus vidas; tanto es así que encuentran un desafío extremo en escribir una respuesta autobiográfica a las lecturas y conferencias. Lo que mejor saben hacer es ordenar en una secuencia lógica las opiniones que otras personas han publicado, parafraseando a una u otra escuela de pensamiento acerca del tema propuesto. Cuando el envoltorio es difícil de rasgar, raramente se preguntan porqué el maldito chisme tiene que estar tan firmemente envuelto. Asumen que el problema está en ellos.”
Hoje, cozinhei esta carta enquanto escrevia sua receita do “esgarret”: pimentão vermelho, bacalhau, azeite de oliva, alho e ovo fervido. No Brasil, o pimentão é a hortaliça mais contaminada por agrotóxicos, segundo uma pesquisa da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), na qual 92% dos pimentões estudados estavam contaminados. Um dos problemas da não redução de tóxicos é o apelo econômico dos agricultores e a indústria de agrotóxicos no Brasil, isto é, é uma questão de incentivos fiscais. O governo brasileiro concede a redução de 60% do imposto relativo à circulação de mercadorias (ICMS), mas não só, existe uma isenção total do PIS/COFINS (contribuições para a Seguridade Social) e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) à produção e comércio dos pesticidas.
Em 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, segundo dados de Greenpeace, depois de cerca de dez anos de plantio de transgênicos, sendo mais da metade deles destinados à soja, que foi a primeira lavoura transgênica inserida no país ilegalmente, no final dos anos noventa. Curiosamente, apesar da gravidade dos resultados das pesquisas, a ANVISA limita-se a fazer recomendações sobre ações que poderiam reduzir a contaminação. Ninguém é responsabilizado por vender produtos contaminados com agroquímicos proibidos, não licenciados ou fora dos limites de tolerância de resíduos.
Na região de Santa Catarina (no sul do país), as pessoas podem saber a origem dos hortifrutigranjeiros colocados à venda com a ajuda do celular. Basta baixar o aplicativo no aparelho e direcioná-lo para o código do produto. Na tela, aparecem todos os dados do produtor. Avó, infelizmente, isso ainda não chegou no Rio. Nós, estamos preparando as cerimônias dos grandes eventos.
O bacalhau é importado da Noruega. Parece que o bacalhau que vem do Atlântico norte com 7 ou 8 cm de espessura e que possui a cor palha é o melhor. Esse é o Bacalhau do Porto Morhua, que vem salgado do próprio mar: o famoso Gadus Morhua. Segundo o banco mundial de dados, a viagem do bacalhau demora 13 dias. O problema não é a viagem, é quando o bacalhau não é bacalhau, mas peixe salgado e seco. Esses peixes são ressecados, colocados em estufas e salgados artificialmente. Dai, as contaminações.
O azeite de oliva é o melhor ingrediente do prato. Lembro que você amava. Usava até para suas curas e orações. Este é um azeite de oliva virgem extra de Castellón. Pla de l’Arc, uma área de Penyagolosa, que tem uma produção de azeite muito pequena, para o consumo dos moradores locais. Eu o comprei no natal, na viagem que fiz com a minha mãe na Serra de Penyagolosa.
O “esgarraet” é uma delícia, mas também é a metáfora da péssima situação em que nos encontramos. Enquanto cozinho esta carta, penso em como fazer para diminuir a ingestão de agrotóxicos. Parece que a resposta está nos alimentos orgânicos, só que no Rio, não é fácil nem barato consumi-los. Porém, não vou ficar travada naquilo que não posso fazer. Trata-se de pensar o que é o que eu consigo fazer para desenvolver práticas mais saudáveis para os meus órgãos e os do planeta.
A vida pessoal é profundamente política, não é? O mergulho na nossa história está ativando imagens apagadas que me reforçam, avó. Para mim, são novas metáforas a serem habitadas.
Sempre te levo no meu coração.
Paola
Este texto é de uma ação que fiz no dia 28/04/2016 na aula “Performances: Teoria, historiografia e criação” de Eleonora Fabião no Centro Municipal Hélio Oiticica – RJ.